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Crônica

Espetacular

Ana Gabriela Alves

              Minhas panturrilhas doem, mas a dor é suportável, quase prazerosa. Enquanto observo meu reflexo no espelho, vejo todos os meus músculos contraídos, esforçando-se ao máximo para me manter no alto, quase flutuando. Leveza, força e delicadeza devem coexistir em perfeita harmonia. "Maria, não é o suficiente." As palavras de Marcos, diretor artístico da companhia em que danço, ecoam em minha mente. Hoje, aos 21 anos, ainda carrego a lembrança de sua primeira decepção comigo, quando eu tinha apenas 12, durante os ensaios para a apresentação de Natal daquele ano.

              Plié. Tendu. Plié. Tendu. Plié. Tendu... perco a conta de quantas vezes fiz essa mesma repetição de exercícios para o aquecimento que estou executando agora. Vou fazê-la até me sentir confortável para me aventurar na coreografia que estamos ensaiando.

              Cada movimento se transforma em uma batalha interna, na qual a linha entre o corpo e a mente se dissolve. O som da música ecoa mas, em minha cabeça, uma cacofonia familiar de vozes se intensifica. Elas sussurram, gritam, imploram por algo que eu não consigo entender. “Você não é uma bailarina,” diz uma delas, “é apenas um fantasma na sombra de sua própria expectativa.” O calor sobe em meu rosto, e eu me pergunto se todos nesta sala estão me observando. Será que sou a única que escuta isso? Cada gota de suor que escorre me deixa mais nervosa, e tudo começa a girar ao meu redor.

              Sinto-me como se estivesse flutuando entre a realidade e um pesadelo. O espelho à minha frente distorce, refletindo não apenas meu corpo, mas todas as críticas, todos os olhares desaprovadores que me cercam. Cada falha se expande em minha mente, como uma bolha prestes a estourar, e eu me pergunto: como consegui chegar até aqui se tudo que faço parece estar errado?

              Os músculos da panturrilha queimam, mas essa dor já não é apenas física; é existencial. "Não é o suficiente, Maria," ecoa novamente a voz de Marcos, e, dessa vez, ela se mescla com as minhas inseguranças. É como se ele estivesse ali, mas não apenas como meu diretor — ele é um espectro, uma presença que me consome. O que ele vê em mim, que eu não consigo enxergar? Estou presa em um ciclo de exigências, e quanto mais me esforço, mais me afasto do que realmente sou.

              Não consigo me concentrar no que estou fazendo aqui, agora. Então, surge uma visão: o palco iluminado, cercado por rostos desconhecidos, todos aguardando minha performance. As luzes se intensificam e, por um momento, sinto que estou sendo engolida por elas. “O que acontece se você falhar?” a voz dentro de mim se transforma em um rugido. O medo se torna quase palpável, uma entidade que se agarra ao meu coração.

              "Você vai desapontá-los," ela continua, e meu coração acelera. E se eu desmaiar no palco? E se as luzes se apagarem e eu me perder na escuridão? O chão sob meus pés parece ceder e a dança se torna um labirinto sem saída. A realidade se fragmenta, e as paredes do estúdio se fecham ao meu redor, como se o espaço estivesse se apertando em uma prisão. De repente, sinto os olhos de todos que estão presentes em mim.

              Meus movimentos se tornam cada vez mais frenéticos, como uma marionete sem controle. Em meio ao caos, uma pequena voz de esperança tenta emergir: “E se você simplesmente dançasse? E se você fosse apenas Maria, sem rótulos, sem obrigações?”. Essa ideia é tão nova que quase me assusta. Ser apenas Maria, sem a pressão de ser perfeita, é uma liberdade que não sei como agarrar. É claro que não nasci para viver algo assim.

               A voz de Marcos corta essa linha de pensamento; e a euforia da revelação se dissipa. O que seria da minha dança se eu não fosse perfeita? Eu me afundo em uma neblina de desespero, questionando se conseguiria escapar dessa prisão mental. Tenho certeza que não. Não sou bonita, tampouco um talento natural. Tenho pouco carisma, não sei fazer mais nada na vida além de tentar, tentar e tentar. Sem a autocrítica, eu estaria perdida. Essa é a força que me move, que me faz conquistar.

— Meninas, descanso — disse Rosa, nossa coreógrafa.

                 Acordo de meus devaneios. Olho em volta, ninguém parece sequer perceber que existo.  Novamente, eu estava em uma paranoia que todos estavam me observando, me julgando. Relutante, seguindo minhas outras colegas, me solto da barra em frente ao espelho e vou até  minha bolsa. Tomo um gole de água e olho a hora em meu celular. Somente 20 minutos haviam passado, e já foi suficiente para me deixar exausta. Encaro para o espelho mais uma vez, e a imagem refletida parece tão distante, tão estranha. Me pergunto se algum dia conseguirei me livrar de mim mesma.

Essa crônica baseia-se no assunto “Transtorno de Personalidade Obsessivo-Compulsiva” e no Filme “Cisne Negro” (2010), abordados com maior profundidade na reportagem “Quando o perfeccionismo se torna uma prisão”, do site Meridiano (projeto jornalístico universitário).

Confira a reportagem no link abaixo:

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